"No fundo de tudo há a aleluia." (Clarice Lispector)
quinta-feira, 31 de maio de 2007
O PRESENTE
quarta-feira, 30 de maio de 2007
...a cidade muito bonitinha.
É um rio muito caudaloso,
muito sinuoso e brilhante.
Há um jardim zoológico e
se há uma coisa
é ver bicho.
Só não tenho cachorro aqui
porque nunca mais terei cachorro,
para não ter que abandonar depois.
Seria infidelidade com Dilermando,
o pobre napolitano.
Enfim, a vida pode ser muito agradável aqui,
muito pacífica;
pode-se trabalhar,
passear,
e com um carro
conhecer a Suíça.
Naturalmente tem
dias em que
o coração está anuviado,
nem dias:
durante um só dia
tudo fica claro
e tudo fica escuro
e de novo
tudo fica claro.
O que é preciso
é não ir demais
contra a onda.
A gente faz
como quando
toma banho de mar:
procura subir
e descer
com a onda.
Isso é uma forma de lutar:
esperar,
Ter paciência,
perdoar,
Amar os outros,
e a cada dia
aperfeiçoar o dia.
Tudo isso está parecendo idiota...
Mas até que não é.”
(Berna, 12 de maio de 1946)
Olga Borelli /Clarice Lispector/Esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro.Nova Fronteira. 1981 .
terça-feira, 29 de maio de 2007
“Criar de si próprio um ser...
...é muito grave.
Estou me criando.
E andar na escuridão completa
à procura de nós mesmos
é o que fazemos.
Dói.
Mas é dor de parto:
nasce uma coisa que é.
É-se.
É duro como uma pedra seca.
Mas o âmago é it mole e vivo,
perecível, periclitante.
Vida de matéria elementar.”
Clarice Lispector/ Água Viva
segunda-feira, 28 de maio de 2007
"Estava reduzida...
...pela incompreensão de Martim, a se lembrar sozinha.
Aliás, neste momento, ela não pedia mais que isto:
Nos primeiros passos cautelosos
Foi assim que Vitória viu o rapaz em seu próprio passado.”
Clarice Lispector, em Maçã no Escuro.
(...maçã no escuro talvez seja
aquele estado mental
em que as idéias parece dialogarem,
e a visão, momentâneo transluzir.
Carmen Cynira, 19,35)
sábado, 26 de maio de 2007
Hoje é Sábado
...e
é feito do mais puro ar,
apenas ar.
Falo-te
como exercício profundo
e pinto
como exercício profundo de mim.
O que quero agora escrever?
Quero alguma coisa tranqüila
e sem modas.
Alguma coisa
como a lembrança
de um monumento alto
que parece mais alto
porque é lembrança.
Mas quero
de passagem
ter realmente tocado
no monumento.
Vou parar
porque hoje é sábado."
Clarice Lispector / Água Viva
Ed. Nova Fronteira, 1978
quarta-feira, 23 de maio de 2007
Nunca Cultives o Absoluto nem o Excesso
Nunca cultives coisas absolutas, como a castidade absoluta ou a sobriedade absoluta: a maior força de vontade é a do homem que gosta de beber e se abstém de beber muito e não a daquele que não bebe de todo.
Deves criar um desejo de beber e de fumar e então fumar e beber moderadamente.
Fernando Pessoa, em Reflexões Pessoais
__Já sei que é que você está pensando __disse Tweedledum,
mas não é nada disso, de modo algum.
__Contrariamente __ continuou Tweedledee __
se assim era, então poderia sê-lo;
e se assim o fosse, então seria;
mas como assim não é, então não será.
É lógico.
__Eu estava querendo saber __disse Alice muito educadamente __,
Qual é a melhor maneira de sair deste bosque;
está ficando escuro.
Vocês podiam me dizer, por favor?
Lewis Carrol/ Aventuras de Alice/trad.e org. Sebastião Uchoa Leite/
Editora Fontana/Summus/ Rio de janeiro. 1977.
domingo, 20 de maio de 2007
No entanto houve uma época
em que o mundo era liso
como a pele de uma
fruta lisa.
Nós, os vizinhos,
não a mordíamos,
porque seria fácil morder,
e havia tempo.
A vida naquele tempo
ainda não era curta.
E enquanto isso __
as árvores cresciam.
As árvores cresciam
como se não houvesse no mundo
senão árvores crescendo.
.........................................................................................
Era-se maduro.
Era mais rico e amedrontador,
de algum modo tornou-se
muito mais
“vale a pena”.
domingo, 13 de maio de 2007
Brincar de Pensar
“Então
comecei a fazer
uma listinha de sentimentos
dos quais não sei o nome.
Se recebo um presente
dado com carinho
por uma pessoa de quem não gosto
- como se chama o que sinto?
A saudade que se tem
de pessoa de quem
a gente não gosta mais
- essa mágoa e esse rancor -
como se chama?
Estar ocupado
e de repente parar
por ter sido tomada
por uma súbita desocupação
desanuviadora e beata,
como se uma luz de milagre
tivesse entrado na sala:
como se chama o que se sentiu?
Mas devo avisar.
Às vezes começa-se
a brincar de pensar,
e eis que
inesperadamente
o brinquedo é que
começa a brincar conosco.
Não é bom.
É apenas frutífero.
Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1984.
sábado, 12 de maio de 2007
Pinta de repente
De repente pinta.
O que é que
tão apenas e somente
pinta de repente?
O barco no horizonte,
o sol no céu,
a estrela e o escuro
a brincar de esconde-esconde
também
de esconde-aparece.
Pinta a oportunidade,
a confusão.
Pinta tanto assim
e como
quando?
onde?
o quê?
pra quê?
Pinta a vida:
jogo de achados e perdidos
de perdas e ganhos:
a sombra do sorriso,
o olho-de-coruja,
o sabor de saliva,
nem sempre salobra.
Sombra,
de repente
pinta a Morte.
A formiguinha no açucareiro.
esse sorver do ar
profundo (a)moroso.
A sensação da ilusão
de solidão plena.
A flor roxa da alcachofra
o ninho de pétalas
De repente..
Carmen Cynira
12/5/2007
15h22min
sexta-feira, 11 de maio de 2007
Concluindo....
e amarfanhou a cortina.
É que um grande besouro
zumbia em torno da lâmpada
e acordou-a.
Ela endireitou-se
e espetou-se com a agulha.
Os animais voltaram a seus lugares,
num instante.
O ar voltou a transformar-se
em tecido.
E a cortina voltou a ficar
quietinha nos joelhos dela.
Tia Bá retornou,
e continuou a bordar
a cortina de Dona Julinha...
quinta-feira, 10 de maio de 2007
(... continuação...)
Os homens e as mulherzinhas não incomodavam os lindos animais,
que eles até tinham um pouquinho de pena deles;
porque todos os bichos,
até o menor dos macaquinhos,
estavam encantados.
Pois uma grande feiticeira
tinha todos em seu poder,
o povo sabia;
e a grande feiticeira se chamava
Tia Bá.
Das janelas de suas casas,
bem acima da aldeia,
os homens e as mulherzinhas
podiam ver
Tia Bá.
Sua face parecia a encosta de uma montanha,
com grandes precipícios e avalanches.
E nas falhas da montanha
estavam
seus olhos,
seus cabelos,
seu nariz
e seus dentes.
E todos os animais que cruzavam seu território,
ela os congelava vivos,
e eles ficavam o dia todo
paradinhos nos seus joelhos;
mas quando Tia Bá caía no sono,
então eles ficavam livres
e desciam à tardinha a Milpassinhópolis
para beber.
quarta-feira, 9 de maio de 2007
Os elefantes beberam;
as girafas comeram as flores
das magnólias mais altas;
e as pessoas que atravessavam as pontes
jogavam bananas para os bichos
e abacaxis para o alto
e rosquinhas recheadas de maçãs
e pétalas de rosas,
que os macaquinhos adoravam
A rainha do carnaval chegou,
na sua liteira;
e o general da banda;
e o primeiro ministro;
o almirante;
o carrasco;
e os importantes dos negócios da cidade,
que era muito linda
e se chamava
MILPASSINHOPÓLIS.
(continua)
segunda-feira, 7 de maio de 2007
O dedal de Tia Bá brilhava sobre eles como sol;
e quando Tia Bá roncava,
os bichos ouviam o vento rangendo
através da floresta.
Eles iam descendo para o campo para beber,
e à medida que eles se moviam,
a cortina azul
(pois Tia Bá estava bordando uma cortina
para a janela da sala de jantar de Dona Julinha)
ia se transformando
em grama,
em rosas
e em margaridas;
aqui e ali pedras brancas e pretas;
com poças e trilhos de carroças
e sapinhos que pulavam depressa,
antes que os elefantes os pisassem.
E lá iam eles,
colina abaixo
em direção ao lago
para beber.
(continua...)...continuando....
Então os bichos começaram a mover-se.
Primeiro foram o elefante e a zebra;
depois a girafa e o tigre;
em seguida o avestruz,
o mandril,
doze marmotas,
um bando de mangustos;
os pingüins e os pelicanos
vinham aos pulinhos,
cutucando uns aos outros.
(continua...)
domingo, 6 de maio de 2007
..........
Os bichos bordados no tecido não se mexeram
até que Tia Bá roncou pela quinta vez.
Uma, duas, três, quatro, cinco _ ah!
Finalmente a velha estava dormindo.
O antílope fez sinal a uma zebra;
A girafa começou a mordiscar as folhas do alto da árvore;
Todos os bichos começaram a se agitar.
Pois o desenho do pano azul
representava uma paisagem
com bandos de animais selvagens
E um pouco abaixo
Havia um lago
E uma ponte
E uma aldeia com telhados redondos
e homenzinhos e mulherzinhas
que espiavam pelas janelas
E que passavam a cavalo
Por sobre a ponte.
Mas assim que tia Bá
roncou pela quinta vez,
o pano azul se transformou
em ar azul;
As árvores se agitavam;
você poderia ouvir
a água do lago
quebrando a margem
e ver as pessoas
se movendo na ponte
e acenando das janelas.
( continua...)
sábado, 5 de maio de 2007
A pétala de hoje? Saborosa:” A cortina da Tia Bá”.
Diz assim:
“TIA BÁ estava cochilando.
Ela tinha dado uma roncada.
Sua cabeça tinha tombado;
seus óculos tinham subido para a testa;
e lá estava ela,
sentada defronte à lareira,
com seu dedo esticado,
com um dedal na ponta;
e sua agulha pendurada
pelo fio de algodão;
ela estava roncando,
roncando;
e sobre os joelhos,
cobrindo seu avental,
estava uma grande peça de tecido azul bordado com figuras.”
(continua...)
de Virgínia Woolf, traduzido por Ruth Rocha. EA
terça-feira, 1 de maio de 2007
"Sou como estrangeiro.....
...em qualquer parte do mundo.
Eu sou do nunca.
Quando pequena eu rodava,
rodava e rodava em torno de mim mesma
até ficar tonta e cair.
Cair não era bom mas a tonteira era deliciosa.
Ficar tonta era meu vício.
Adulta eu rodo
mas quando fico tonta
aproveito de seus poucos instantes
para voar.
Acho que loucura é perfeição.
É como enxergar.
Ver é a pura loucura do corpo.
Letargia.
A sensibilidade trêmula
tornando tudo ao redor mais sensível
e tornando visível,
com um pequeno susto e impalpável.
Às vezes acontece
um desequilíbrio equilibrado
assim como uma gangorra
que ora está no alto
ora está no baixo.
E o desequilíbrio da gangorra
é exatamente
o seu equilíbrio."
Um sopro de vida: pulsações / Clarice Lispector
Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1978.