"No fundo de tudo há a aleluia." (Clarice Lispector)

domingo, 9 de dezembro de 2007

um réquiem em sua homenagem


Visão de Clarice Lispector


Clarice

veio de um mistério, partiu para outro.
Ficamos sem saber a essência do mistério.

Ou o mistério não era essencial,

era Clarice viajando nele.
Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,

onde a palavra parece encontrar

sua razão de ser, e retratar o homem.


O que Clarice disse, o que Clarice

viveu por nós em forma de história

em forma de sonho de história

em forma de sonho de sonho de história

(no meio havia uma barata
ou um anjo?)

não sabemos repetir nem inventar.

São coisas, são jóias particulares de Clarice

que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.


Clarice não foi um lugar-comum,

carteira de identidade, retrato.

De Chirico a pintou? Pois sim.


O mais puro retrato de Clarice

só se pode encontrá-lo atrás da nuvem

que o avião cortou, não se percebe mais.


De Clarice guardamos gestos. Gestos,

tentativas de Clarice sair de Clarice

para ser igual a nós todos

em cortesia, cuidados, providências.

Clarice não saiu, mesmo sorrindo.

Dentro dela

o que havia de salões, escadarias,

tetos fosforescentes, longas estepes,

zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,

formava um país, o país onde Clarice

vivia, só e ardente, construindo fábulas.


Não podíamos reter Clarice em nosso chão

salpicado de compromissos. Os papéis,

os cumprimentos falavam em agora,

edições, possíveis coquetéis

à beira do abismo.

Levitando acima do abismo Clarice riscava

um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.


Fascinava-nos, apenas.

Deixamos para compreendê-la mais tarde.

Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice.


Carlos Drummond de Andrade