"No fundo de tudo há a aleluia." (Clarice Lispector)

terça-feira, 30 de setembro de 2008

JOTA TOLEDO - SAUDADE



O ENORME BOLSO DE DEUS
“A fé remove montanhas – sobretudo as de dinheiro”.
(Flávio de Carvalho)


Acham que detesto cães? Errado! Como deixaria de gostar do melhor amigo do Homem? Para provar a veracidade do dito, comunico que acabo de adquirir um de estimação. Logicamente, não se trata do Cão dos Basckervilles, nem de Cérbero, o mitológico cachorro infernal, muito menos do Chien Andalous, de Buñuel, ainda que este último se preste melhor a meu Surrealismo congênito. Nada disto! Trata-se de simpático pastor alemão.
Alguns podem até pensar ser pouco, porém o que há hoje de melhor do que se ter um pastor como amigo? Sobretudo nestes tempos bicudos de rapina, bandalheira e uso tão incorreto da língua germânica, filosoficamente ideal? Além de vir acompanhado dos dogmas de Goethe, ele me protege dos perigos existenciais que pairam sobre a Pátria. E mais, o veterinário que cuida do animal afirmou que ele é meu pastor e nada me faltará. Pronto, volto a me sentir novamente seguro.
Apesar de algum eventual xixi nos pés do piano, posso outra vez criar uma obra em paz e sob proteção de meu cãozinho, cujo nome recuso contar de público receando piadas gratuitas.
Entretanto, garanto não se tratar de nome comum e muito menos de pedigrees especiais tipo “Who’s Who” canino. Simplesmente sonhei com ele. Ah! E que sonho foi aquele.
Ali o próprio Senhor apareceu à minha porta e, em todo seu esplendor, tirou da algibeira um exótico filhote de pastor e me sussurrou aos ouvidos: “__Toledo, meu velho, aqui está um cachorro que só a ti confio e sobre o qual tens de cuidar com todo zêlo de tua fé vespertina. Contudo, deves a mim um dízimo pelo regalo do pastor: caberá à tua inventividade arrecadar R$ 6.000 000 e abrir uma conta corrente em nome dele que, de agora em diante, será teu...” E sumiu como fumaça...
Como sempre soube que Deus é megalomaníaco e pode ser absolutamente imprevisível, não estranhei e continuei admirando-O por sua benevolência e pelo corte de sua barba radical-socialista. Só não sei agora como agradecer àquela graça tão singela a não ser por meio da fé existente em meu peito tabágico, fazer as orações devocionais de praxe e, é lógico, ter coragem para arrumar o tal dízimo, que de imediato mandarei creditar na conta de meu pastor. O trato foi este e com a palavra de Deus não se brinca. Entretanto, como deixar de pensar no que o danado fará com tamanha quantia? Adquirirá uma pilha de ossos, uma fábrica de postes ou simplesmente um título do Kennel Club para roer?
Se Deus, com seus grandes bolsos, escrever certo por linhas tortas, quem saberia prever os caminhos tortuosos dum pastor enriquecido? Mas uma coisa é verdadeira: podem outros filhotes se meter em intrigas políticas e ventar para Miami. Não o meu. Outros pastores, bafejados pelo mesmo sonho podem adquirir desejos de poder. Nunca o meu.
Muito menos pensar em comprar estádios de futebol e ladrar messianismos em microfones alheios. O meu jamais! Enfim, que atitude poderia tomar um inofensivo pastor endinheirado, senão abanar o rabinho, correr até a esquina e comprar toneladas de desinfetante para provar a pureza do pêlo e a virtude de suas intenções?
Aguardarei até lá para ver o resultado da cachorrada.
Afinal, apesar da exuberância e da imprevisibilidade da cornucópia divina, há muito é sabido que quem se deita com cães amanhece com pulgas.
Bom dia.

J. Toledo / A DIVINA COM MIDIA - crônicas bizantinas
editora brasiliense: 1996- foto guto
Crônicas também publicadas semanalmente em
O CORREIO POPULAR 1995/96

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