Quase primavera/2008
Hora de trabalhar. Yâma Froy dirige-se para seu studium-escritório-laboratório: Tão somente um refúgio ao real de si - mesma: exílio para existir.
Lá chegando, deu-se pelo esquecimento dos óculos de ver de perto. O melhor a fazer era não fazer nada. Usufruir do esquecimento. Sente o corpo pesado. Doem-lhe músculos e ossos. Deseja relaxar corpo e mente. Música é necessário. Cabeça confusa, confusa, confusa.
Por que não ficou em casa? Poderia arrumar o armário. Pôr ordem na caixa dos botões, lantejoulas, fitas, bijuterias. Tudo em ordem ficaria tão bonitinho. Fecha o armário. Aquele quarto vai voltar a ser o que era antes, só que agora modificado. Vai tirar a cortina outrora amarela, as caminhas cobertas com edredons estampados e almofadas marinho rosa e bege servirão de sofás. Quando Bebel e Dé vierem o quarto vai estar lindinho, diz para si mesma, mesmo sabendo que não vai ser ainda da próxima vez.
Não vai dar tempo.
Instintivamente pega um cigarro. No gesto de acender, a chama
causa uma súbita momentânea parada: a proibição do médico. O mal-estar provocado pelo bronco dilatador, a conversa com o amigo:” Para de fumar é como matar o amante. É saber de antemão que não terá substituto. Essa de ir deixando aos poucos e, de vez em quando ir dar uma trepadinha não vale. É dizer-se nunca mais”. Leva o cigarro aos lábios. Dá uma profunda tragada e solta lentamente a fumaça que esculpe esculturas dançantes.
Por que é tão imbecil?Por que teima em ser imbecil?
Vem-lhe a mente o conto de Clarice: Miopia Progressiva ou Evolução de uma Miopia. Enxergar pra dentro? Mais ainda? Por que não dizer o real tão em si mesmo: esse habitar na dúvida, ilha no mar das incertezas. É que mágoas lhe perduram como se ali mesmo estivesse a fonte que as faz brotarem. Nuvens: lágrimas sublimadas. Colhe-as num vidro de cristal.Se tornarão nuvens. Restará no vazio do vidro o sal. Vai até a janela. Um imenso outdoor anuncia:Diga Não à Inflação. Diz-se não como se antevendo a cena. Transforma-a na cena desejada :alegria do encontro. Voltar ao sertão onde jerimum é chamado de abóbora? Sem música? Cadê o violeiro e o sanfoneiro? O gato comeu?Cadê o gato? O gato fugiu. E na fuga parece ter encontrado ratinho fujão na Terra de Peter Pan: a do Nunca, substantivo de tempo. Lá onde não há ágape nem filia. Lá onde se sabe o processo penoso, tanto pra rato quanto pra gato, que digerir é. Não tivesse encontrado o encontrado pelas artimanhas do acaso, o grande senhor de todas as coisas (Buñuel), não estaria assim. Burra! Ler com o coração, já que a Razão é semianalfabeta na lígua-mãe e muito mais ainda em idioma estrangeiro, só podia dar nisso: aqui e agora, de repente, de novo o teatro. Considera que o teatro é para ser assistido não só na platéia como nas coxias. Foi assim que viu Orlando de Wirginia Woolf. Também lhe são familiares bastidores e palcos. No palco do teatro da vida já não sabe quem é. Parece, porém que sabe quem não é: Não é poeta ainda.” O Poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”
Ah! Fingir a alegria que deveras sente?! A dos sonhos, das fantasias, dos devaneios. Alegria de anjos brincando de esconde-esconde. De murmúrios de lagostas. De vagalumear de pirilampos. De gota de orvalho dançando na pétala do bem-me-quer.
De primeiro raio de sol nascendo. De lua-nova ocultando luar
De boi, boi, boi, boi da cara preta, leva esta menina que tem medo de careta.
A música do acalanto a leva para outra berceuse. Resolve gravar uma fita: de um lado só berceuses; de outro, minuetos. Finalizar com Liebsfreud. Depois, ouvindo o que gravara, volta à primeira infância: a avó cantando em leto para faze-la adormecer, contando estórias da terra onde era camponesa, falando da neve, tecia uma suéter para Gertrudes, a boneca de pano. Em casa ouvia-se a BBC. O pai a embalava na cadeira de balanço, declamando poemas em inglês, francês ,alemão.
Todos foram obrigados por ele a aprender jogar xadrez. Menos ela. Será que seu pai pressentia que aquela menininha iria jogar xadrez somente com a vida?
Teria sido bom ter aprendido as regras do jogo?
Também jogavam Bridge. Esse, ele quis ensiná-la. Ela não se interessou. Talvez agora interessasse.
Os sons do Liebsfreud indicam o final da fita. Desliga o som. Pega Santo Agostinho, sua chave, e no caminho de volta lhe ocorre:
Na sintonia e sincronia é que se dá sinfonia.
Percebe que alimentar besteira na dimensão imaginativa é da esfera do sublime.
Chegando, brinca com Tá, To e Te e vai arrumar o armário.
Outono, 1993 / CCLGS
Hora de trabalhar. Yâma Froy dirige-se para seu studium-escritório-laboratório: Tão somente um refúgio ao real de si - mesma: exílio para existir.
Lá chegando, deu-se pelo esquecimento dos óculos de ver de perto. O melhor a fazer era não fazer nada. Usufruir do esquecimento. Sente o corpo pesado. Doem-lhe músculos e ossos. Deseja relaxar corpo e mente. Música é necessário. Cabeça confusa, confusa, confusa.
Por que não ficou em casa? Poderia arrumar o armário. Pôr ordem na caixa dos botões, lantejoulas, fitas, bijuterias. Tudo em ordem ficaria tão bonitinho. Fecha o armário. Aquele quarto vai voltar a ser o que era antes, só que agora modificado. Vai tirar a cortina outrora amarela, as caminhas cobertas com edredons estampados e almofadas marinho rosa e bege servirão de sofás. Quando Bebel e Dé vierem o quarto vai estar lindinho, diz para si mesma, mesmo sabendo que não vai ser ainda da próxima vez.
Não vai dar tempo.
Instintivamente pega um cigarro. No gesto de acender, a chama
causa uma súbita momentânea parada: a proibição do médico. O mal-estar provocado pelo bronco dilatador, a conversa com o amigo:” Para de fumar é como matar o amante. É saber de antemão que não terá substituto. Essa de ir deixando aos poucos e, de vez em quando ir dar uma trepadinha não vale. É dizer-se nunca mais”. Leva o cigarro aos lábios. Dá uma profunda tragada e solta lentamente a fumaça que esculpe esculturas dançantes.
Por que é tão imbecil?Por que teima em ser imbecil?
Vem-lhe a mente o conto de Clarice: Miopia Progressiva ou Evolução de uma Miopia. Enxergar pra dentro? Mais ainda? Por que não dizer o real tão em si mesmo: esse habitar na dúvida, ilha no mar das incertezas. É que mágoas lhe perduram como se ali mesmo estivesse a fonte que as faz brotarem. Nuvens: lágrimas sublimadas. Colhe-as num vidro de cristal.Se tornarão nuvens. Restará no vazio do vidro o sal. Vai até a janela. Um imenso outdoor anuncia:Diga Não à Inflação. Diz-se não como se antevendo a cena. Transforma-a na cena desejada :alegria do encontro. Voltar ao sertão onde jerimum é chamado de abóbora? Sem música? Cadê o violeiro e o sanfoneiro? O gato comeu?Cadê o gato? O gato fugiu. E na fuga parece ter encontrado ratinho fujão na Terra de Peter Pan: a do Nunca, substantivo de tempo. Lá onde não há ágape nem filia. Lá onde se sabe o processo penoso, tanto pra rato quanto pra gato, que digerir é. Não tivesse encontrado o encontrado pelas artimanhas do acaso, o grande senhor de todas as coisas (Buñuel), não estaria assim. Burra! Ler com o coração, já que a Razão é semianalfabeta na lígua-mãe e muito mais ainda em idioma estrangeiro, só podia dar nisso: aqui e agora, de repente, de novo o teatro. Considera que o teatro é para ser assistido não só na platéia como nas coxias. Foi assim que viu Orlando de Wirginia Woolf. Também lhe são familiares bastidores e palcos. No palco do teatro da vida já não sabe quem é. Parece, porém que sabe quem não é: Não é poeta ainda.” O Poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”
Ah! Fingir a alegria que deveras sente?! A dos sonhos, das fantasias, dos devaneios. Alegria de anjos brincando de esconde-esconde. De murmúrios de lagostas. De vagalumear de pirilampos. De gota de orvalho dançando na pétala do bem-me-quer.
De primeiro raio de sol nascendo. De lua-nova ocultando luar
De boi, boi, boi, boi da cara preta, leva esta menina que tem medo de careta.
A música do acalanto a leva para outra berceuse. Resolve gravar uma fita: de um lado só berceuses; de outro, minuetos. Finalizar com Liebsfreud. Depois, ouvindo o que gravara, volta à primeira infância: a avó cantando em leto para faze-la adormecer, contando estórias da terra onde era camponesa, falando da neve, tecia uma suéter para Gertrudes, a boneca de pano. Em casa ouvia-se a BBC. O pai a embalava na cadeira de balanço, declamando poemas em inglês, francês ,alemão.
Todos foram obrigados por ele a aprender jogar xadrez. Menos ela. Será que seu pai pressentia que aquela menininha iria jogar xadrez somente com a vida?
Teria sido bom ter aprendido as regras do jogo?
Também jogavam Bridge. Esse, ele quis ensiná-la. Ela não se interessou. Talvez agora interessasse.
Os sons do Liebsfreud indicam o final da fita. Desliga o som. Pega Santo Agostinho, sua chave, e no caminho de volta lhe ocorre:
Na sintonia e sincronia é que se dá sinfonia.
Percebe que alimentar besteira na dimensão imaginativa é da esfera do sublime.
Chegando, brinca com Tá, To e Te e vai arrumar o armário.
Outono, 1993 / CCLGS
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