"No fundo de tudo há a aleluia." (Clarice Lispector)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Explosão :criação do artista plástico Afranio Montemurro

www.toteespacocultural.com.br/destaque.htm

Da Transparência


Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência
No fundo do mar de nossa alma não há corais nem búzios
Mas sufocado sonho
E não sabemos bem que coisa são os sonhos
Condutores silenciosos canto surdo
Que um dia subitamente emergem
No grande pátio liso dos desastres

Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poetica - Geografia

Foto Carmen Oceanário de Lisboa 2009

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

UM APÓLOGO

ERA UMA VEZ uma agulha, que disse a um novelo de linha: — Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo? — Deixe-me, senhora. — Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça. — Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros. — Mas você é orgulhosa. — Decerto que sou. — Mas por quê? — É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu? — Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu? — Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados... — Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando... — Também os batedores vão adiante do imperador. — Você é imperador? — Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto... Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha: — Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima. A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile. Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe: — Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: — Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
Machado de Assis

sábado, 14 de novembro de 2009

Na taça de vinho


brinca de si - mesma
mornas chuvas
enlaçam se entrelaçam
convidativas
de abraço
laço líquido
bolhas se explodem
no impossível- tudo- é -possível.
A saia longa e rodada
conduz à ciranda de idéias,
fantasias :
ciranda -cirandinha
vamos- todos- cirandar-
vamos- dar –a-meia- volta
volta- e -meia- vamos dar.
carmen cynira
texto e foto taça de vinho
Portugal 2009

quinta-feira, 12 de novembro de 2009


Tempo espaço
Onde ela se revela.
Tempo lugar
onde a si mesma se revela.
Se revela velada
em véus
em nós
em palavras,
e além delas,
a um deus,
um fantasma,
semblante do
homem com olho de boi
do sonho
acabadinho de acordar.
Foto Carmen/Portugal/2009

quarta-feira, 11 de novembro de 2009



Desate o colar de pérolas
Deixe-as cair (em)
degraus de mármore
do particular convento
e desembaraçar (em) fios
dificuldades
dúvidas
isso daquilo
eles e elas
do ouvido
do sentido
do achado
do suposto
da tessitura da vida
aqui e agora.
E assim é.
Capela dos Ossos/ Portugal/2009
Foto Carmen

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Lux, lucis

“para que se saiba uma coisa,
é preciso que ela seja dita,
mas também, desde que ela é dita,
ela é provisoriamente verdadeira” (Barthes)
O em que acredito é o avesso do que é visto/ entrevisto.
Seria o território do infalavel porque inaudito ?
Nonsense?

?

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Desde sempre


ENVELHECER

Estamos envelhecendo juntos, você e eu;
Hora de nos perguntarmos, o que mesmo é a idade?
Os olhos mornos estão fechados nem bem a noite chega;
A cabeça preguiçosa, despenteada ainda ao entardecer.
Apoiado às pessoas, algumas vezes caminho fora de casa;
Ou então passo o dia sentado, de portas fechadas;
A gente não ousa mais olhar no espelho o rosto polido;
A gente não consegue ler livros de letras pequenas.
Mais e mais, a gente passa a gostar de velhos amigos;
Menos e menos, a gente quer estar entre os jovens.
E um prazer apenas é cada vez maior:
O de conversar à toa, quando nos encontramos.
Renúncia
Mantenha seus pensamentos longe do que se passou ou que foi feito;
Porque pensar no passado desperta remorso e dor.
Impeça seus pensamentos de pensarem no que vai acontecer;
Pensar no futuro deixa as pessoas desanimadas.
Melhor, de dia, sentar-se como um saco numa cadeira;
Melhor, de noite, deitar-se como uma pedra na cama.
Quando a comida chegar, então abra a boca;
Quando o sono chegar, então feche os olhos.
En Diarios de Pequim/ Sergio Cantarelli