"No fundo de tudo há a aleluia." (Clarice Lispector)

quinta-feira, 31 de maio de 2007

O PRESENTE




"...amor será dar de presente um ao outro a própria solidão?

Pois é a coisa mais última que se pode dar de si."
(A Descoberta do Mundo/ Clarice Lispector _Rio de Janeiro:Nova Fronteira: 1984)

quarta-feira, 30 de maio de 2007


Continuo a achar...

...a cidade muito bonitinha.

Há passeios deliciosos à beira do rio

Aar. Se isso é nome de rio.
É um rio muito caudaloso,
muito sinuoso e brilhante.
Há um jardim zoológico e
se há uma coisa
que eu adoro
é ver bicho.
Só não tenho cachorro aqui
porque nunca mais terei cachorro,
para não ter que abandonar depois.
Seria infidelidade com Dilermando,
o pobre napolitano.
Enfim, a vida pode ser muito agradável aqui,
muito pacífica;
pode-se trabalhar,
passear,
e com um carro
conhecer a Suíça.
Naturalmente tem
dias em que
o coração está anuviado,
nem dias:
durante um só dia
tudo fica claro
e tudo fica escuro
e de novo
tudo fica claro.
O que é preciso
é não ir demais
contra a onda.
A gente faz
como quando
toma banho de mar:
procura subir
e descer
com a onda.
Isso é uma forma de lutar:
esperar,
Ter paciência,
perdoar,
Amar os outros,
e a cada dia
aperfeiçoar o dia.

Tudo isso está parecendo idiota...
Mas até que não é.”

(Berna, 12 de maio de 1946)

Olga Borelli /Clarice Lispector/Esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro.Nova Fronteira. 1981 .
(Sinto-me levada ao rio de minha aldeia, com Fernando Pessoa...Carmen Cynira)

terça-feira, 29 de maio de 2007


“Criar de si próprio um ser...

...é muito grave.

Estou me criando.
E andar na escuridão completa
à procura de nós mesmos
é o que fazemos.
Dói.
Mas é dor de parto:
nasce uma coisa que é.
É-se.
É duro como uma pedra seca.
Mas o âmago é it mole e vivo,
perecível, periclitante.
Vida de matéria elementar.”



Clarice Lispector/ Água Viva


segunda-feira, 28 de maio de 2007

"Estava reduzida...





...pela incompreensão de Martim, a se lembrar sozinha.
Aliás, neste momento, ela não pedia mais que isto:

pensar sozinha, como alguém que recebeu uma carta

e se impacienta pelo momento imperturbado de lê-la.
Nos primeiros passos cautelosos

em direção a um passado inexplorado,

Vitória procurava se lembrar melhor do rapaz da fogueira.

Naquele inferno de fogo, na tarde suave,

aquele rapaz que se movia

com a sombria delicadeza que um animal tem...
Foi assim que Vitória viu o rapaz em seu próprio passado.”


Clarice Lispector, em Maçã no Escuro.

(...maçã no escuro talvez seja
aquele estado mental
em que as idéias parece dialogarem,
e a visão, momentâneo transluzir.
Carmen Cynira, 19,35)

sábado, 26 de maio de 2007

Hoje é Sábado

“Hoje é sábado...


...e
é feito do mais puro ar,
apenas ar.
Falo-te
como exercício profundo
e pinto
como exercício profundo de mim.
O que quero agora escrever?
Quero alguma coisa tranqüila
e sem modas.
Alguma coisa
como a lembrança
de um monumento alto
que parece mais alto
porque é lembrança.
Mas quero
de passagem
ter realmente tocado
no monumento.
Vou parar
porque hoje é sábado."



Clarice Lispector / Água Viva
Ed. Nova Fronteira, 1978

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Nunca Cultives o Absoluto nem o Excesso


Nunca cultives coisas absolutas, como a castidade absoluta ou a sobriedade absoluta: a maior força de vontade é a do homem que gosta de beber e se abstém de beber muito e não a daquele que não bebe de todo.

O movimento antialcoólico é um dos maiores inimigos da vontade própria e do desenvolvimento da vontade.

Castrar um homem «controlará» certamente os seus impulsos sexuais.

Castrar a sua alma também fará o mesmo.

A dificuldade é abster-se.
Deves criar um desejo de beber e de fumar e então fumar e beber moderadamente.

Graças a este método, não só desenvolverás a tua vontade decisivamente,

obrigando-a a impor limites aos teus impulsos, que é a função própria da vontade

(e não a eliminação dos impulsos),

mas também extrairás o maior prazer possível de beber ou de fumar,

pois a Natureza concebeu as coisas de um modo tal que o maior prazer vem depois do maior poder, a temperança, e o sinal da normalidade é este.


Fernando Pessoa, em Reflexões Pessoais
É lógico

__Já sei que é que você está pensando __disse Tweedledum,
mas não é nada disso, de modo algum.

__Contrariamente __ continuou Tweedledee __
se assim era, então poderia sê-lo;
e se assim o fosse, então seria;
mas como assim não é, então não será.
É lógico.


__Eu estava querendo saber __disse Alice muito educadamente __,
Qual é a melhor maneira de sair deste bosque;
está ficando escuro.
Vocês podiam me dizer, por favor?



Lewis Carrol/ Aventuras de Alice/trad.e org. Sebastião Uchoa Leite/
Editora Fontana/Summus/ Rio de janeiro. 1977.

domingo, 20 de maio de 2007


O texto anterior está em Maçã no Escuro, Clarice Lispector

Nova Fronteira, 1982
_Infância e maturidade, disse-lhe então de repente.

No entanto houve uma época
em que o mundo era liso
como a pele de uma
fruta lisa.
Nós, os vizinhos,
não a mordíamos,
porque seria fácil morder,
e havia tempo.
A vida naquele tempo
ainda não era curta.
E enquanto isso __
as árvores cresciam.
As árvores cresciam
como se não houvesse no mundo
senão árvores crescendo.
.........................................................................................
Era-se maduro.
Era mais rico e amedrontador,
de algum modo tornou-se
muito mais
“vale a pena”.


domingo, 13 de maio de 2007

Brincar de Pensar

“Então

comecei a fazer

uma listinha de sentimentos

dos quais não sei o nome.

Se recebo um presente

dado com carinho

por uma pessoa de quem não gosto

- como se chama o que sinto?

A saudade que se tem

de pessoa de quem

a gente não gosta mais

- essa mágoa e esse rancor -

como se chama?

Estar ocupado

e de repente parar

por ter sido tomada

por uma súbita desocupação

desanuviadora e beata,

como se uma luz de milagre

tivesse entrado na sala:

como se chama o que se sentiu?

Mas devo avisar.

Às vezes começa-se

a brincar de pensar,

e eis que

inesperadamente

o brinquedo é que

começa a brincar conosco.

Não é bom.

É apenas frutífero.




A Descoberta do Mundo/Clarice Lispector _
Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1984.


sábado, 12 de maio de 2007

Pinta de repente

De repente pinta.

O que é que

tão apenas e somente

pinta de repente?

O barco no horizonte,

o sol no céu,

a estrela e o escuro

a brincar de esconde-esconde

também

de esconde-aparece.

Pinta a oportunidade,

a confusão.

Pinta tanto assim

e como

quando?

onde?

o quê?

pra quê?

Pinta a vida:

jogo de achados e perdidos

de perdas e ganhos:

a sombra do sorriso,

o olho-de-coruja,

o sabor de saliva,

nem sempre salobra.

Sombra,

de repente

pinta a Morte.

A formiguinha no açucareiro.

esse sorver do ar

profundo (a)moroso.

A sensação da ilusão

de solidão plena.

A flor roxa da alcachofra

o ninho de pétalas

De repente..

Carmen Cynira

12/5/2007

15h22min

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Concluindo....

De repente Tia Bá teve um grande sobressalto
e amarfanhou a cortina.
É que um grande besouro
zumbia em torno da lâmpada
e acordou-a.
Ela endireitou-se
e espetou-se com a agulha.
Os animais voltaram a seus lugares,
num instante.
O ar voltou a transformar-se
em tecido.
E a cortina voltou a ficar
quietinha nos joelhos dela.
Tia Bá retornou,
e continuou a bordar
a cortina de Dona Julinha...

quinta-feira, 10 de maio de 2007

(... continuação...)

Os homens e as mulherzinhas não incomodavam os lindos animais,

que eles até tinham um pouquinho de pena deles;

porque todos os bichos,

até o menor dos macaquinhos,

estavam encantados.

Pois uma grande feiticeira

tinha todos em seu poder,

o povo sabia;

e a grande feiticeira se chamava

Tia Bá.

Das janelas de suas casas,

bem acima da aldeia,

os homens e as mulherzinhas

podiam ver

Tia Bá.

Sua face parecia a encosta de uma montanha,

com grandes precipícios e avalanches.

E nas falhas da montanha

estavam

seus olhos,

seus cabelos,

seu nariz

e seus dentes.

E todos os animais que cruzavam seu território,

ela os congelava vivos,

e eles ficavam o dia todo

paradinhos nos seus joelhos;

mas quando Tia Bá caía no sono,

então eles ficavam livres

e desciam à tardinha a Milpassinhópolis

para beber.

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Os elefantes beberam;

as girafas comeram as flores

das magnólias mais altas;

e as pessoas que atravessavam as pontes

jogavam bananas para os bichos

e abacaxis para o alto

e rosquinhas recheadas de maçãs

e pétalas de rosas,

que os macaquinhos adoravam

A rainha do carnaval chegou,

na sua liteira;

e o general da banda;

e o primeiro ministro;

o almirante;

o carrasco;

e os importantes dos negócios da cidade,

que era muito linda

e se chamava

MILPASSINHOPÓLIS.

(continua)

segunda-feira, 7 de maio de 2007

O dedal de Tia Bá brilhava sobre eles como sol;

e quando Tia Bá roncava,

os bichos ouviam o vento rangendo

através da floresta.

Eles iam descendo para o campo para beber,

e à medida que eles se moviam,

a cortina azul

(pois Tia Bá estava bordando uma cortina

para a janela da sala de jantar de Dona Julinha)

ia se transformando

em grama,

em rosas

e em margaridas;

aqui e ali pedras brancas e pretas;

com poças e trilhos de carroças

e sapinhos que pulavam depressa,

antes que os elefantes os pisassem.

E lá iam eles,

colina abaixo

em direção ao lago

para beber.

(continua...)



...continuando....


Então os bichos começaram a mover-se.

Primeiro foram o elefante e a zebra;

depois a girafa e o tigre;

em seguida o avestruz,

o mandril,

doze marmotas,

um bando de mangustos;

os pingüins e os pelicanos

vinham aos pulinhos,

cutucando uns aos outros.


(continua...)




domingo, 6 de maio de 2007

..........

Os bichos bordados no tecido não se mexeram

até que Tia Bá roncou pela quinta vez.

Uma, duas, três, quatro, cinco _ ah!

Finalmente a velha estava dormindo.

O antílope fez sinal a uma zebra;

A girafa começou a mordiscar as folhas do alto da árvore;

Todos os bichos começaram a se agitar.

Pois o desenho do pano azul

representava uma paisagem

com bandos de animais selvagens

E um pouco abaixo

Havia um lago

E uma ponte

E uma aldeia com telhados redondos

e homenzinhos e mulherzinhas

que espiavam pelas janelas

E que passavam a cavalo

Por sobre a ponte.

Mas assim que tia Bá

roncou pela quinta vez,

o pano azul se transformou

em ar azul;

As árvores se agitavam;

você poderia ouvir

a água do lago

quebrando a margem

e ver as pessoas

se movendo na ponte

e acenando das janelas.

( continua...)

sábado, 5 de maio de 2007


A pétala de hoje? Saborosa:” A cortina da Tia Bá”.

Diz assim:

“TIA BÁ estava cochilando.

Ela tinha dado uma roncada.

Sua cabeça tinha tombado;

seus óculos tinham subido para a testa;

e lá estava ela,

sentada defronte à lareira,

com seu dedo esticado,

com um dedal na ponta;

e sua agulha pendurada

pelo fio de algodão;

ela estava roncando,

roncando;

e sobre os joelhos,

cobrindo seu avental,

estava uma grande peça de tecido azul bordado com figuras.”

(continua...)



de Virgínia Woolf, traduzido por Ruth Rocha. EA




terça-feira, 1 de maio de 2007


"Sou como estrangeiro.....

...em qualquer parte do mundo.
Eu sou do nunca.
Quando pequena eu rodava,
rodava e rodava em torno de mim mesma
até ficar tonta e cair.
Cair não era bom mas a tonteira era deliciosa.
Ficar tonta era meu vício.
Adulta eu rodo
mas quando fico tonta
aproveito de seus poucos instantes
para voar.
Acho que loucura é perfeição.
É como enxergar.
Ver é a pura loucura do corpo.
Letargia.
A sensibilidade trêmula
tornando tudo ao redor mais sensível
e tornando visível,
com um pequeno susto e impalpável.
Às vezes acontece
um desequilíbrio equilibrado
assim como uma gangorra
que ora está no alto
ora está no baixo.
E o desequilíbrio da gangorra
é exatamente
o seu equilíbrio."

Um sopro de vida: pulsações / Clarice Lispector
Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1978.