"No fundo de tudo há a aleluia." (Clarice Lispector)

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

LER CLARICE

Clarice Lispector, esta inigualável escritora brasileira, não conta estória alguma nem faz estória nenhuma. Aqui já se encontra uma de suas características.

Suas personagens, mercê de suas condições, não passam de pretexto em que se ampara a ficção clariciana.
Pois é, e a grande arte de Clarice é,
antes de mais nada , preterir a ficção mimética para poder libertar-se do peso da criação;
expressar uma realidade intrínseca ; um refletir sem sair das paredes do sigo mesma;
mergulhar nos labirintos de si própria e lá pôr a ir e vir ;
voltear-se
e cruzar e recruzar frases, palavras, pensamentos,
como as nordestinas sempre o fizeram nas rendas de bilro jogados de lá para cá , de cá para lá, presos nos fios que formam rendados.
As nordestinas jogam os bilros cantantes
e seguram alguns na mão esquerda ,
outros na mão direita.
Cada bilro tem sua hora e sua vez a ser Jogado.
E aqueles que se chocam com os outros
dão a musicalidade dos caroços de macaúba.
Daí, não adianta o raciocínio para entender Clarice .
É como rito Rosa Cruz em que o raciocínio não ajuda em nada;
é enigma em que não se deve nem piscar.
Desta feita , ler Clarice é questão de senti-la ou não senti-la .
É quando se depara escritor-leitor com o drama da linguagem que, sem dúvida, afronta o inconsciente, Clarice vai além e aquém dos bilros interiores.
Às vezes, com ironia;
às vezes com inigualável prosa poética e,
às vezes, diante de um fato acidental,
acontecimento que nos pareceria corriqueiro.
Mas eis abrirem-se as cortinas da epifania e,
para isto, basta-lhe
um cego a mastigar
goma de mascar com a boca semi-aberta
ou mesmo uma mulher que ,
ao subir no bonde bate uma sacola com ovos e
lá vai a gosma transparente e amarela
a descer , a escorrer, vestido abaixo.
Pronto ! Estão abertas as cortinas da epifania
com que Clarice busca a salvação para o drama da linguagem
já que abertas as cortinas da epifania,
desabrocham inesperados insights.
Por esta razão e por outras ,
ler Clarice é deixar-se levar com toda a simplicidade aos instantes adequados ;
aos solilóquios , ao vadiar , sem o que não se faz arte;
ou, como that one who has just pretended reading
ou comment celui que ne veut pas comprendre rien et que vivre est seulement pour laissez-faire
que muitos chamam de inconseqüente inconsciente
e outros, mergulho interior a buscar mais e mais da melodia clariciana do sentir ou não sentir Clarice.

Enfim, ler uma obra de Clarice é procurar manter-se em interação com aquela que diz sem falar:
é ser leitor e cúmplice do eu falante ;
é buscar a frase ainda não expressa;
é estar em constante estado de alerta ;
é rastrear o triângulo de que nos fala Antonio Cândido:
a obra> o escritor e o escritor-leitor. Amém.


João Batista Vota
Campinas 23 de dezembro de 2008
joao.batista2621@terra.com.br

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